Temporada 2009 - Tema 01

Acorrentados , por Paulo Mendes Campos

Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Texto extraído do livro “O Anjo Bêbado”, Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

por Bruno Benjamim

Busquei na palavra “Acorrentados” toda a referência que necessitava para desenvolver a letra da canção “Preso na Ternura”.  

A idéia foi criar um verdadeiro mafuá de palavras que nos remetem ao estado de se sentir preso, esclarecendo por fim, que a prisão do contexto, é a nossa própria vida e toda a ternura cotidiana que a cerca.

A melodia surgiu primeiro, a partir da harmonia que veio quase que de “supetão”. A partir daí, foi necessário encaixar métrica e viajar nas influências atuais de Tom Zé, Arnaldo Antunes, e outras figuras da nossa MPB.

Preso na Ternura

Preso, presídio, pranto, prisão
Angola, Iraque, Congo, Japão
Cela, gaiola, grade, paixão
Algema, corrente, corda, cordão

To preso na vida, preso no lar
Preso na beleza do lugar
To preso no mundo, preso no chão
Preso na ternura da canção

E tem gente que não sabe não
Tem gente que não … sabe

Gatuno, mão-leve, rato, ladrão
Doença, mazela, fome, patrão
Inveja, ciúmes, raiva, razão
Dinheiro, fortuna, alma, cifrão

To preso na vida, preso no lar
Preso na beleza do lugar
To preso no mundo, preso no chão
Preso na ternura da canção

E tem gente que não sabe não
Tem gente que não sabe não
E tem gente que não … sabe

To preso na vida, preso no lar
Preso na beleza do lugar
To preso no mundo, preso no chão
Preso na ternura da canção

Tem gente que não sabe não
Tem gente que não … sabe

por Guga Bruno

quando li a crônica , pensei numa melodia como um comercial da unimed , com um narrador recitando frases poéticas e na tela imagens singelas , em câmera lenta , cores suaves . 

achei que pra isso funcionar precisaria de um compasso 3/4 e uma harmonia em tom maior , sem dissonâncias , sem grandes experimentações .

a frase que mais me chamou a atenção ( por identificação direta ) foi “quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz” , entao usei-a como base para a letra .

gravei e mixei em menos de duas horas , de olho no prazo e no conjunto da informação , nao me preocupando com a qualidade sonora . só meti um reverb , porque achei importante pra compor o clima imaginado .

acorrentado

vou voltar pela trilha aberta por mim
com golpes precisos de lenço e lembrança
de lutar contra o mundo sem nada nas maos
esqueçam da força , só resta história
ao entrar pela porta aberta pra mim ,
morro metade , mas sobro inteiro
pra voltar pela trilha aberta por mim ,
se lembro , preciso , se perco , espero pra ver .

vou me recobrando
vou me recobrindo
vou me ressentir
vou me retornando

vou me descobrindo
vou me desdobrando
vou me despedir
vou me descolando

por Mauricio Coutinho

Quando recebi o convite para participar do musica artesanal, o tema 1 já tinha as músicas. 

Tendi a escrever algo num sentido mais provável, mas acho que consegui escapar um pouco. A música ‘O que será?’, do Chico Buarque, foi a primeira coisa que me veio também. Tentei encarar algo além do texto. Ler atrás da linha. Imaginar o semblante do escritor. Entender o porquê daquilo ali. Tentei citar na música algo com uma acepção mais etérea. Outro plano ou mesmo filosofia. Assim como o texto, a música e uma estrutura bem complexa. Paradoxalmente, ela também é objetiva.

A intenção é que a música tenha várias interpretações (do mesmo tema) a cada vez que é escutada.

É de Deus

Só contradição
E soltos saltos de razão em mim
Fatos que farão
Lembrar de fato a pensar assim
Pode ninguém perceber
Do quão além
É achar, sorrir, chorar
Discordar

Tanta citação
Assalta e insulta o sábio e o cidadão
Todo ato então o hiato entoa faz dizer quem são
Resta ninguém prometer
Que é de notar
Tal bondade fez mostrar
E é de Deus

por Marcello Cals

é bem verdade que até hoje compus bem poucas canções, e destas, menos ainda foram colocadas à prova de ouvinte outro que não eu mesmo. mas todas elas nasceram de um sentimento meu, muito particular, estimulado naturalmente. 

compor segundo temas propostos por outros, criando a necessidade de buscar dentro de algo que desconheço um significado próprio que possa ser exprimido de forma musical é algo muito instigante, e cá estou. por ser novidade, criei do nada também uma metodologia que, apesar de ser afim com o meu método de criação, só o tempo dirá se irá ser bem sucedida ou não.

com o prazo de 2 semanas, me dei a primeira para assentar o assunto na cabeça, sem pressão ou perspectiva alguma de criação, deixando a outra para composição em si.

não sou do tipo que compõe de improviso. acontece, mas não como um padrão. me angustia ter que pegar um instrumento qualquer e tocá-lo, pior ainda se com outras pessoas, de forma a criar uma fagulha ou, pior, um produto completo. prefiro inventar uma meta abstrata qualquer e a partir dela ir trilhando um caminho, que me levará certeiramente ao objetivo inicial ou a um totalmente diferente. mas preciso ter alguns parâmetros iniciais. apesar de saber me virar basicamente em alguns instrumentos, raramente os uso para compor. melodias quase que exclusivamente são criadas de forma isolada, na minha cabeça, cantaroladas à capela, e a harmonia é conseqüência disto, nunca ao contrário. nunca sei a tonalidade da melodia inventada, canto como me é mais confortável e descubro o tom somente após – caminho que causa estranheza a vários amigos compositores, que disseram usualmente fazer justo da forma inversa.

o tema me passou uma coisa sonhadora do tipo boa, até porque eu acho que as pessoas em geral levam tudo muito a sério demais e perdem uma série de oportunidades de ver as coisas de um lado bem mais lúdico. isso me fez querer que a canção fosse bem leve, com a inocência do tipo do sujeito que pensa assim. a “estorinha” que criei inicialmente era de um sujeito que viajasse no tempo apenas com suas lembranças. mas, com o desenvolver dela, caiu por terra, aproveitando da idéia apenas um trecho. em dado momento cogitei que o sujeito, de tão lúdico, no final estivesse preso por assassinato passional e ainda vendo a coisa de uma maneira bela. mas achei meio tenso demais pro tempo que tinha pra desenvolver.

um macete que eu uso quando quero criar uma melodia e tenho um tema – o que era o caso – é o de balbuciar alguma(s) palavra(s) de forma que o ritmo dela(s) acabe influenciando na forma da melodia. com a cabeça ainda na primeira “estorinha”, saiu o que veio a ser as estrofes da rua e a da chuva, definindo a melodia, usando uma referência bem preliminar em “the course of being in love” do sondre lerche pra ter da onde partir. a “estorinha” da letra então se modificou para ser “o relato de um dia lúdico”, desde o amanhecer até o anoitecer, mas depois achei sem necessidade e preferi criar vários fatos isolados. algo que gosto é de dar algum desfecho pra canção, mas tem que ter cuidado pra não ser piegas, espero que não tenha sido. em algum momento ao longo do desenvolvimento das estrofes fiquei tentado a criar uma melodia e uma letra para refrão. mas logo vi que iria deixar a música grande demais, e provavelmente com a tal da mensagem piegas como letra deste trecho, o que, sendo refrão, faria dele mais piegas ainda. desisti completamente, e tentei resolver as partes com o arranjo, para apesar de serem 3 iguais, não causarem monotonia.

deu no que deu.

A máquina do tempo

se saio bem cedo em receio que assim evite de atrasar,
congelo em transe de hipnose, ao que se move o sol, partindo em despertar.
e pede ao vento, sem perda de tempo, que à poeira ceda a dança:
e se balança em roda, e canta seu “vum vum vum” saudando tudo o que passar.

se um gato e um novelo se atracam numa batalha milenar,
cancelo os planos de domingo, fico assistindo pra ver que bicho que vai dar.
e se o olfato sentir que de fato a chuva vem para brincar com os seus jatos,
quase me mato de tanto rir do pique-pega que ela faz

se passo na rua que é sua e há tanto não freqüento mais,
em um segundo estamos juntos, pois vejo o mundo de dezesseis anos atrás.
se pego flores, as deixo ao acaso em tua porta,
sem saber porque que faço de qualquer caso essa aventura juvenil de quero mais